Por Renato Moraes
A pequena Manhuaçu (grande chuva, em tupi), na Zona da Mata mineira, distante cerca de 280 km de Belo Horizonte, integra inúmeros registros da ditadura militar. Em 1969, a cidade, então com seus pouco mais de 17 mil habitantes na zona urbana 30 mil na zona rural, recebeu os 16 primeiros presos políticos que seriam enviados para a recém-inaugurada Penitenciária de Linhares, em Juiz de Fora. Foram capturados por policiais do 11º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar de Minas Gerais, de Manhuaçu, enviados ao Parque Nacional da Serra do Caparaó para averiguar a presença de “cabeludos” e “barbados” que se vestiam diferente dos moradores e andavam armados pelo parque, de acordo com a população local.
Essa e outras histórias fazem parte do livro Das rugas que irrompem na superfície lisa da história: as formas clandestinas de informação nas décadas de 60/70 em Juiz de Fora, resultado da dissertação de mestrado de Ramsés Albertoni Barbosa, menção honrosa no Prêmio Capes de Teses e Dissertações 2021. O prefácio é de Christina Ferraz Musse, presidente da Alcar, professora da UFJF e orientadora da pesquisa.
O livro, produzido pela Editora da UFJF está, literalmente, no prelo e ainda não há data prevista de lançamento. “Depois a gente vai ver se a gente vai fazer alguma coisa, né? Sentar num boteco da vida e lançar um livro digital”, brinca o autor. Barbosa é professor de Língua Portuguesa, graduado em Letras pela UFJF, mestre em Poética pela UFRJ e em Comunicação pela UFJF e, atualmente, doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens da UFJF.
Ramsés nasceu em São João Nepomuceno, também na Zona da Mata de Minas, mas mora desde os 12 anos em Juiz de Fora, cidade também protagonista desta história, “de onde partiram as tropas do Exército que deflagraram o golpe civil-militar de 1964”, conforme lembra Musse no prefácio da obra.
O interesse pela pesquisa que resultou no livro, conta Barbosa, começou na adolescência, quando teve contato com toda a história da ditadura a partir de vários livros. “O livro do Marcelo Rubens Paiva, Feliz Ano Velho, me remeteu para o livro do Gabeira (Fernando – O que é isso, Companheiro?). E depois veio o projeto do Brasil Nunca Mais (obra produzida por Dom Paulo Evaristo Arns, rabino Henry Sobel e o pastor Jaime Wright)”, recorda.
Memórias – O leitor poderá encontrar na obra uma série de dados que incluem uma cronologia do golpe de 64, que começou a tomar forma prática quando no dia 28 de março de 1964 se reuniram, em Juiz de Fora, os generais Mourão Filho e Odílio Denys juntamente com o governador do estado, Magalhães Pinto. É o que relata Barbosa no livro tendo como referência matéria da Revista Realidade, edição 97, de abril de 1974.
Segundo outra referência da obra, matéria do Diário Mercantil de 11 de abril de 1964, a reunião visava estabelecer uma data para o início da mobilização militar para a tomada do poder, a qual ficou decidida como 4 de abril de 1964. Entretanto, o general Mourão Filho não esperaria até abril para dar início ao golpe civil-militar, e ainda no dia 31 de março tomou uma atitude impulsiva partindo com suas tropas de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro, por volta das três horas da manhã. Para tanto, a empresa de transporte interestadual Viação Útil prestou serviços e apoiou o golpe civil-militar de 1964 transportando tropas militares para vários pontos do território nacional.
Ainda segundo o relato transcrito no livro, o general Castello Branco ainda tentou segurar o levante, ligando para Magalhães Pinto, pois, segundo o militar, o movimento ainda era prematuro. Entretanto, não dava mais para controlar os acontecimentos.
Identificação – “Sou comunista e sou ateu. Então tem uma ligação pessoal, tem uma história de vida com essa minha pesquisa. Foi uma realização mesmo”, diz Ramsés sobre o livro de 250 páginas. Na busca pelo que o autor chamou de “ruínas e os rastros discursivos, cujas formas narrativas foram capazes de se entranhar pelas frestas dos discursos hegemônicos e escaparem ao seu controle”, a obra reproduz histórias a partir de jornais clandestinos O Porrete e A Luta, o manuscrito Até Sempre 3. Também ouviu pessoas diretamente envolvidas nos episódios.
“Com relação ao Processo 5/69, que trata dos jornais O Porrete e Luta, foram entrevistados José Salvati Filho, Luiz Carlos Torres Martins e Rogério de Campos Teixeira. Quanto ao processo 32/70, que trata do manuscrito Até Sempre 3, foi entrevistada Ângela Pezzuti”, relata Barbosa na introdução do livro.
“Dentro desse contexto de embates ideológicos, alguns jovens militantes que residiam na cidade de Juiz de Fora, ligados à União Juiz-Forana de Estudantes Secundaristas (UJES), articularam, em 1968, um grupo que se contrapunha ao regime ditatorial; para tanto, alugaram uma casa no bairro Santa Luzia, Zona Sul, e um quarto no bairro Borboleta, Zona Oeste, locais onde editavam e guardavam os jornais clandestinos O Porrete e Luta, dentre outros, cujo conteúdo recebia a influência do jornal Piquete, editado pelo grupo Colina”, completa.
No livro, Barbosa aborda, ainda, o silêncio da imprensa sobre as denúncias de tortura e outros crimes. “No início do ano de 1970, o manuscrito Até Sempre 3 fora apreendido pelas forças de repressão na Penitenciária de Linhares, originando o Processo 32/70. O manuscrito relata o interrogatório coletivo de 12 presos políticos, ligados ao grupo Colina, detidos na Penitenciária de Linhares, que durou 27 horas, entre os dias 19 e 20 de março de 1970, na sede da Auditoria da IV Circunscrição Judiciária Militar (IV CJM), em razão do Processo 73/69. Não obstante as graves acusações proferidas pelos presos políticos, registradas nos autos do processo 73/69, a imprensa local se calou diante das denúncias de sevícias, assassinatos e desrespeito às leis”.
Durante a pesquisa, o autor recorreu também a informações recolhidas em outros periódicos, processos jurídico-militares, arquivos oficiais do Brasil e dos Estados Unidos, relatórios das Comissões da Verdade no Brasil, depoimentos cedidos à Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora. Também buscou apoio, em grande parte, do material de acervo dos jornais Diário Mercantil, Diário da Tarde e Correio da Manhã. Segundo Barbosa, “tudo lido sob a marca da suspeita, haja vista que foi produzido em situações marcadas pela violência de situações-limite”.